Eu via passarinhos voando no céu de maré estrelar
No peito roncava o motor silencioso atormentado,
A dose de vinho cereja ardia na boca, a água, que meu Tio
cortou no canavial naquela tarde cedinho de Abril.
E minha avó dormindo corria a 7 palmos do chão
‘Baião, Baião, Baião’ – era o Dirceu que gritava chamando
para o rango aqueles peões
Que rodaram o dia inteiro nas mãos dos coronéis,
Seu Alberto sorria da porta fechada, que ninguém nunca viu,
pois tudo ali era escuro, a lamparina, a lamparina sim, pelo meio de querosene,
subia fumaça preta no meio da casa, que casa? Eu, nem casa tinha, mas olhava
das brechas que a madeira deixava, e de lá também saia cheiro de comida. Dona
Gecilda fazia panelada de saudades, com sabor de colo de mamãe, será que mamãe
já comeu meu sinhô? Dizia eu, olhando pro céu, tão escuro
como a cor dos meus olhos.
‘– MARCOOOO, MARRCCOOO’ - meu Tio gritava perto do meu
ouvido, e eu saia correndo pro meu lar feito de papelão e terra. Ninguém
conhecia meu tio, talvez as doses que eu tomava eram tentativas de ter uma
realidade diferente da minha ou baseada em sei lá o que, nos senhores que
dormiam do meu lado, talvez, eu sei é que queria ser gente grande, beber e
namorar, via os velhos passando na rua de mãos dadas e se beijando, “-que nojo”, eu não queria namorar de
beijar na boca, mas ter namorada parecia ser legal e as pessoas tinham
respeitavam.
Dizer que agora sou homem grande, e bater no peito.
Lá do barranco os urubus faziam festa no resto que era meu
também, seu Genaro me chamava, mandava eu buscar um balde com água pra ele na
cacimba, em troca ele me dava comida, eu corria com aquele balde como se fosse
um tesouro preste a ser roubado, minhas pernas finas e cansadas me aturavam
mais do que podiam. O bom vinha depois, vinha como vinho, eu costumava ir as
portas dos bares e restaurantes, pegava resto de vinho e comida refinada no
lixo, colecionava garrafas. Pra quem diz que pobre nunca poderá comer do bom e
do melhor, é porque não me conheceu. Era resto, mas era um resto refinado, e eu,
de nariz em pé, me sentindo o dono daquilo tudo, e naquilo tudo eu não era
nada.
Minha fome saciada, meus olhos fundos, minhas pernas
cansadas, meu pés dormentes, e aqueles carros passando por mim, a molecada
jogando futebol na quadra, logo adiante o morrinho pra eu subir, meu barraco só
cabia mesmo a minha cama feita de barro duro, do telhado eu via o céu, tão
bonito e tão longe, mas que cobria também, minha mãezinha, então, abraçando o
mundo com os pés, e com as mãos enxugando a dor da saudade em meus olhos.
Sábado, era dia de esperar o caminhão do lixo, quanta
felicidade, esperava um sapato novo, um boné talvez, mal podia esperar, já
dançava nas batidas que meu coração dava.
Corri, tinha que ser mais rápido que os adultos e os outros
da minha idade, ah! Mas eu estava muito fraco, cheguei tarde, rodopiei, chorei,
qual desgraça era a minha, já não podia mais desfrutar das coisas novas do
lixo, miséria! Miséria!
Naquele dia, tal o que eu encontrei voltando pra minha digna
casa, um livro.
-pffff! Um livro. Como ele iria me ser útil? Não sei ler.
Nunca fui a escola.
Fui à casa do senhor Genaro novamente, após uns baldes com
água ele quis me pagar com comida.
- O senhor não pode me ensinar a ler? Senhor Genaro.
- Hahaha! Então você prefere leitura a um prato de comida?
Genaro me ensinou passo a passo as maravilhas do Abecedário,
com o tempo eu peguei jeito e paixão pela leitura, desfrutei dos melhores
sabores, vi além do céu, sabia agora ler os nobres vinhos que tomava, eu tinha
saído do meu mundo pra ser um desbravador, agora sim, eu era gente grande, vivi
romances com Julieta, com Aurora, fui amante da Capitú, matei Policarpo
Quaresma, me arrisquei a voar pelo céu com vassouras e usar magia.
Quando completei meus 18 anos, ensinava os outros da vila
dos miseráveis, quando o caminhão do lixo chegava, esperávamos o próximo conto,
em qual aventura iriamos nos meter, qual magia tinha o lixo.
FIM
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